O Escriba Analfabeto
Imagine a seguinte situação:
Você quer criar um personagem para uma campanha em um cenário antigo, e decide que ele vai ser um escriba – uma pessoa capaz de ler e entender textos escritos na sua e em outras linguagens, bom para fazer pesquisas em bibliotecas e aprender conhecimentos ocultos.
Você passa pelas imensas listas de Vantagens, Desvantagens, Méritos, Falhas, Talentos, Perícias, Conhecimentos e outros. Após um bom tempo contabilizando pontos de personagem, você finalmente conclui. Seu personagem está pronto, do jeito que você visualizou.
Em um determinado momento, o Mestre do Jogo pede para você fazer um teste para conseguir ler um pergaminho particularmente deteriorado, e você percebe que… se esqueceu de comprar a característica de Ler e Escrever, e agora você tem um escriba analfabeto.
O que fazer agora? O MJ pode assumir que você sabe ler e escrever, afinal, você é um escriba. Mas isso pode ser injusto com os outros jogadores, porque eles também gastaram horas computando seus pontos. O MJ pode conceder a todos os pontos adicionais para corrigir esses e outros problemas, mas isso pode mudar o nível de poder da campanha e custar alguns minutos de jogo até que todos se preparem. Mas também não dá para deixar seu personagem dessa maneira.
O exemplo acima é exagerado, é claro, e sempre é possível contornar esse tipo de situação. Mas existem situações mais realistas em que algo semelhante pode acontecer. Além disso – e esse é o ponto principal – um sistema supostamente aberto e flexível não deveria permitir que você gaste horas criando o personagem e não consiga materializar a sua visão.
Pessoas – ou o que quer que o personagem represente – são coisas bastante complexas. Quando você o imagina, há uma série de características que você tem em mente, mas também há muitas outras que você só descobre após algum tempo pensando sobre ele, ou até mesmo após algumas (ou várias) sessões de jogo.
Há uma série de soluções em relação a isso no mundo dos RPGs. Muitos permitem a combinação de estereótipos para gerar uma personalidade mais complexa. É o caso dos sistemas baseados em d20, em que você escolhe raças e classes. Por outro lado, há sistemas que oferecem uma série de características menos abrangentes, e supõem que você faça as escolhas que achar adequadas, como o GURPS, por exemplo. A grande maioria fica em algum lugar intermediário.
Mas todos eles são limitados. Não é realista esperar que um sistema, não importa o quanto ele seja detalhado, seja capaz de conter todas as características que descrevem seu personagem. O melhor tipo de solução que eu já vi é a provida por descrições abertas: você escolhe um ou alguns conceitos que descrevem o seu personagem, mas não associa a eles uma série de modificadores ou habilidades especiais. Ao contrário, o Mestre do Jogo e os jogadores decidem, durante a sessão, se um ou outro estereótipo se aplica. E, caso você descubra alguma particularidade não prevista, é fácil combinar com o MJ como inclui-la.
É claro que isso não é uma solução perfeita, mas ela tem algumas vantagens. Como não é necessária uma relação completa de características, criar seu personagem se torna muito mais um exercício de descrevê-lo do que atribuir números. Além disso, é interpretando o personagem conforme sua descrição que o jogador recebe vantagens, então isso estimula o role-playing. Por fim, essa forma pode incentivar a troca de ideias entre jogadores e Mestre, o que sempre torna o jogo interessante.